sábado, 26 de novembro de 2016

Assim, de repente





Na primeira vez que eu te vi, você usava um vestido estranho e uma coisa enrolada na cabeça que impedia de ver seus cabelos. Achei isso meio estranho porque achamos esquisito aquilo que não espelho, aquilo que não reflete o que nós consideramos habitual. Você cantarolava 'Love is Love' e achava estranho tudo aquilo que não era para o bem comum.

Na segunda vez que eu te vi, sabia que conhecia você de algum lugar, mas não lembrava de onde. Cumprimentei. Você interrompeu a canção que cantarolava, sorriu e disse 'você não me é estranho'. Eu estava perdido porque eu me perco em qualquer lugar que não seja meu bairro. Você me ensinou o caminho.

Na terceira vez que eu te vi, você estava retocando maquiagem na parada de ônibus. Cumprimentei. Você cantarolava "A mim e a mais ninguém". Conversamos pouco tempo e logo descobrimos uma série de amigos em comum. Todo mundo se conhece nessa cidade! Marcamos umas cervejas.

Na outra vez que eu te vi, eu não estava muito bem, estava com a cabeça pelas tabelas, mas fui pra não desmarcar. Eu te esperei na porta do shopping porque você quis ir naquele onde quase todo mundo se perde. Eu só me encontro no meu bairro. Você balbuciou um trecho de Felicidade, do Marcelo Jeneci. Você disse que eu não parecia bem. Conversamos amenidades, alguns planos, coisas mirabolantes. Falamos dos corações combalidos, da solidão, das preocupações com a juventude, dos desamparos, da falta de tempo para as nossas turmas e das gentes boas que temos perdido por displicências, imprudências, impaciências, irresponsabilidades e por atenção pouca.

Todas as vezes que nos vemos ¬ muitas vezes ¬ você busca sempre me fazer entender que a humanidade não é irrecuperável. Replico que os dias têm sido pesados. Você pondera. O importante é que encontrem em nós mais legados que escombros.

Quando digo que às vezes me perco, você então diz pra eu fazer os meus caminhos e ser meu próprio caminho.

Ontem quando nos vimos, em uma noite de iluminação pouca, depois de você muito lamentar as gentes boas que temos perdido, fizemos um longo silêncio. Eu, entre a lamentação e a consolação, pensei verdades chinesas, mas desisti. Apenas ouvi lamentos e aderi ao silêncio. Desde então o poema Felicidade, do Paulo Hecker Filho, ocupa o lugar do meu cérebro.

P.S.: "Meu bem, mas quando a vida nos violentar, pediremos ao bom Deus que nos ajude. Falaremos para a vida 'vida, pisa devagar. Meu coração ¬ cuidado! ¬ é frágil'¬" (Belchior)