sexta-feira, 15 de maio de 2015

Michel



Toca o telefone e ele se mantém inerte, sentado na cama com um bilhete e uma fotografia antiga nas mãos, enquanto pensa em tudo que poderiam ser. E pensa nos equívocos e na falta de expectativas que ambos criaram.
Repete para si mesmo que Sandra está em todos os lugares, em todas as coisas, nos livros da estante. Está naquele livro do José Serra em que ele critica a disparidade entre os programas eleitorais e alerta para o uso excessivo de personagens, efeitos e para a falta de propostas efetivas. Ela faz a mesma crítica.
O telefone toca novamente, outra vez não faz menção de atender e tenta identificar se a canção que toca naquele momento, em um rádio na sala, é mesmo Chico César. “onde estará o meu amor?”, cantarola, pergunta, mal sabe o que está fazendo.
Ela está em tudo. Naquele CD do Chico Buarque, mais precisamente na canção “Sem você II”. Sem você é o fim do show. Pensa, cantarola, declama, reclama. Está no jogo de futebol, no sofrimento da torcida do Fluminense e pergunta-se como é que ela tem se saído nesses dias de crise no Tricolor. Imagina que ela tem xingado e sofrido sem medidas, com medo de que finalmente paguem a série B.
Outra vez o telefone. A música que toca no rádio da sala lhe faz olhar a fotografia que tem nas mãos. “E o que vai ficar na fotografia são os laços invisíveis que havia”.
Há tempos abandonou algumas diversões e bebedeiras. Quase tudo tornou-se detestável. Afastou-se de algumas pessoas, dedica-se pouco ao trabalho, trancou-se em casa. Lê. Assiste. Ouve muita música e tenta entender por que abriu mão de seu ideal de independência, de evitar criar laços. Tudo seria mais fácil se mantivesse o ideal do desapego.
Outra vez o telefone. Não atende, nem mesmo quer ver quem liga. Pergunta-se por ela. No rádio, Chico Cesar ajuda com as perguntas. “Será que vela como eu? Será que chama como eu? Será que pergunta por mim? Onde estará o meu amor?”.
Ela está em tudo, em todos os lugares. Está em “Quase Poesia”, de Orlando Ribeiro Gonçalves, no poema “inimitável”. 'Já não suporto o tempo que nos separa/ Isto é, os dias em que não te vejo/ Ou melhor, os dias em que estou cego/ Para qualquer beleza que não seja a tua/'.
E outra vez o telefone tocou até que a chamada fosse perdida. E lembrou das noites, do tempo em que estiveram juntos, pensou na entrega desmedida e vazia de precauções. Pensa, lembra, lamenta, sofre etc, fez disso algo natural.
Outra vez toca o telefone. Não atende. Toca novamente, mas para poucos segundos depois. Bateria descarregou, preferiu nem mesmo saber quem ligava. Talvez algum amigo pra dizer que ele precisa ter mais cuidados consigo, ir pra rua, parar de ouvir tanta música triste e largar mão de crônicas tristes. Afinal, como diz a canção que tocava naquele instante, “o que vale é o sentimento e amor que a gente tem no coração”.
Madrugada. Sandra desistiu dos telefonemas. Michel dormiu segurando a foto dos dois e o bilhete com um trecho de “o mundo aos meus pés”, de Marcelo Camelo.
P.S.: “Ao sentar e olhar pro chão, Michel notou que a solidão lhe consumiu” (Parafusa).