terça-feira, 19 de julho de 2016

Cecília



Meio dia. Um calor de rachar catedrais. Ela chega, senta num banquinho na Frei e põe-se a falar sobre silêncio e culpa e uma vontade oceânica de voltar pra casa e dormir. Às vezes fica meio perdida, olhando sem olhar. Noutros momentos cita trechos de canções, cantarola algumas, reclama da economia e dos caras que xingaram Chico Buarque.

Ela insiste em falar, embora incomodada com a indiferença, pois gostaria de ouvir pelo menos um “entendo”. Mas não ouve, nenhuma letra lhe é dirigida, como se o que dissesse não fizesse qualquer sentido.

Ainda assim continua falando. Reclama do ex-namorado, fala que o encontrou recentemente e tudo pareceu uma ambientação de “the winners take all”, porque ele foi apenas lhe cumprimentar e ela quis chorar lágrimas de esguicho, mas preferiu não contar sobre sua triste vida. Estava tensa. Fala que está morrendo de fome.

Segue o desabafo. Seu chefe não valoriza seu trabalho, o professor não reconhece seu esforço e ela pensa em largar o mestrado. Reclama do cansaço.

Do outro lado da avenida as pessoas olham pra ela, que se pergunta se não seria melhor contar suas histórias pra elas, pois a pessoa ao lado não dá atenção. Ela, na verdade, mal olhou pra quem estava no banquinho, apenas se danou a falar. Reclama de dor de cabeça.

Seu assunto passa a ser o prefeito. Xinga. Vai aumentar o preço da passagem, fosse pelo menos um ônibus que prestasse, mas uns troços que fazem um barulho horrível, parece um barulho de metrô. Sem contar que ele mandou fechar quase todos os retornos da cidade. Espera que façam manifestações, mas torce para que não façam pichações na estátua do vigia de metrô, o Petrônio Portela.

Ela já não suporta a indiferença, se sente mais ignorada que alface no prato do Ed Mota, que velho em um asilo, que um pedinte no bar Ponto Chico, então opta por uma piada.

Era uma vez cem anões em um deserto. Eles encontraram uma lâmpada, eis que aparece um gênio. Ele diz: cada um tem direito a um pedido. O primeiro diz 'eu quero ter um metro e noventa'. O segundo pede o mesmo, o terceiro, o quarto, o nonagésimo nono. Aí chega a vez do último e ele fala 'que todos voltem a ser anões'.” Ela dá uma gostosa risada, mas do seu lado nenhum sorriso esboçado. Estranho, é meio triste, mas todos riem dessa estória.

Eis que ela olha pro lado e toma um susto. Não percebeu – solidão versus distração – mas durante 56 minutos conversou com um dos bonequinhos do presépio que os funcionários da prefeitura esqueceram naquele banquinho no canteiro da Frei.

Ela olha pros lados, tenta disfarçar e fala de si pra si “a solidão me consumiu”.


P.S.: “Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma, até quando o corpo pede um pouco mais de alma, a vida não para.” (Lenine)