Toca o telefone e ele se mantém
inerte, sentado na cama com um bilhete e uma fotografia antiga nas
mãos, enquanto pensa em tudo que poderiam ser. E pensa nos equívocos
e na falta de expectativas que ambos criaram.
Repete para si mesmo que Sandra está em todos os lugares, em todas as coisas, nos livros da estante.
Está naquele livro do José Serra em que ele critica a disparidade
entre os programas eleitorais e alerta para o uso excessivo de
personagens, efeitos e para a falta de propostas efetivas. Ela faz a
mesma crítica.
O telefone toca novamente, outra
vez não faz menção de atender e tenta identificar se a canção
que toca naquele momento, em um rádio na sala, é mesmo Chico César.
“onde estará o meu amor?”, cantarola, pergunta, mal sabe o que
está fazendo.
Ela está em tudo. Naquele CD do
Chico Buarque, mais precisamente na canção “Sem você II”. Sem
você é o fim do show. Pensa, cantarola, declama, reclama. Está no
jogo de futebol, no sofrimento da torcida do Fluminense e pergunta-se
como é que ela tem se saído nesses dias de crise no Tricolor.
Imagina que ela tem xingado e sofrido sem medidas, com medo de que
finalmente paguem a série B.
Outra vez o telefone. A música
que toca no rádio da sala lhe faz olhar a fotografia que tem nas
mãos. “E o que vai ficar na fotografia são os laços invisíveis
que havia”.
Há tempos abandonou algumas
diversões e bebedeiras. Quase tudo tornou-se detestável. Afastou-se
de algumas pessoas, dedica-se pouco ao trabalho, trancou-se em casa.
Lê. Assiste. Ouve muita música e tenta entender por que abriu mão
de seu ideal de independência, de evitar criar laços. Tudo seria
mais fácil se mantivesse o ideal do desapego.
Outra vez o telefone. Não
atende, nem mesmo quer ver quem liga. Pergunta-se por ela. No rádio,
Chico Cesar ajuda com as perguntas. “Será que vela como eu? Será
que chama como eu? Será que pergunta por mim? Onde estará o meu
amor?”.
Ela está em tudo, em todos os
lugares. Está em “Quase Poesia”, de Orlando Ribeiro Gonçalves,
no poema “inimitável”. 'Já não suporto o tempo que nos separa/
Isto é, os dias em que não te vejo/ Ou melhor, os dias em que estou
cego/ Para qualquer beleza que não seja a tua/'.
E outra vez o telefone tocou até
que a chamada fosse perdida. E lembrou das noites, do tempo em que
estiveram juntos, pensou na entrega desmedida e vazia de precauções.
Pensa, lembra, lamenta, sofre etc, fez disso algo natural.
Outra vez toca o telefone. Não
atende. Toca novamente, mas para poucos segundos depois. Bateria
descarregou, preferiu nem mesmo saber quem ligava. Talvez algum amigo
pra dizer que ele precisa ter mais cuidados consigo, ir pra rua,
parar de ouvir tanta música triste e largar mão de crônicas
tristes. Afinal, como diz a canção que tocava naquele instante, “o
que vale é o sentimento e amor que a gente tem no coração”.
Madrugada. Sandra desistiu dos
telefonemas. Michel dormiu segurando a foto dos dois e o bilhete com
um trecho de “o mundo aos meus pés”, de Marcelo Camelo.
P.S.: “Ao sentar e olhar pro chão, Michel notou que a solidão lhe consumiu” (Parafusa).
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